Em 23 de abril de 2014, o Brasil deu um passo significativo no estabelecimento de um marco regulatório para a Internet com a sanção da Lei 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet (MCI). Esta legislação emergiu após um amplo e meticuloso processo de discussão pública, envolvendo múltiplos setores da sociedade, e propôs-se a estruturar princípios fundamentais para o uso da rede no país, como privacidade, proteção de dados, liberdade de expressão, neutralidade da rede e responsabilidade dos provedores.
No décimo aniversário de sua implementação, é imprescindível refletir sobre sua trajetória e relevância. O MCI surgiu em resposta à necessidade de uma regulamentação que transcendesse a perspectiva puramente criminal da internet, visando proteger direitos essenciais e promover um ambiente digital seguro e justo. Seu nascimento foi uma clara indicação de que o Brasil reconhecia a internet como um campo vital para a expressão da cidadania.
Essencialmente, o MCI consolidou-se como um texto inovador ao priorizar um processo de formulação aberto e inclusivo, caracterizado por consultas públicas e debates entre acadêmicos, especialistas em tecnologia, a sociedade civil e o setor de mercado. Este método colaborativo não apenas enriqueceu o conteúdo da legislação, mas também promoveu uma maior aceitação da mesma por parte dos diversos atores envolvidos.
No coração do MCI está a busca pela garantia de direitos básicos dos usuários da internet, como a proteção da privacidade e dos dados pessoais, o que se reflete em exigências claras de transparência e consentimento informado. Além disso, a lei reforça a neutralidade da rede, um princípio fundamental para a preservação da livre concorrência e da igualdade de acesso a informações e serviços online.
Um dos aspectos mais debatidos do MCI é o Artigo 19, que trata da responsabilidade dos provedores de plataformas digitais sobre conteúdos gerados por terceiros. A exigência de uma ordem judicial específica para a remoção de conteúdo ilícito é uma tentativa de equilibrar a liberdade de expressão com a proteção contra abusos e danos na internet. Embora este artigo tenha sido alvo de intensos debates sobre sua constitucionalidade e aplicabilidade, ele representa um esforço crucial para lidar com as complexidades da gestão de conteúdo digital.
Apesar de seus avanços, o MCI não está isento de críticas. Alguns argumentam que a lei poderia ser mais ágil e específica ao abordar novas formas de interação digital e modelos de negócios que evoluem rapidamente. Além disso, a emergência de tecnologias como a inteligência artificial e o uso expansivo de algoritmos requerem uma revisão contínua da legislação para garantir que continua relevante e eficaz.
Ainda que o Marco Civil da Internet seja um marco regulatório essencial, é importante que continuemos a revisá-lo e adaptá-lo. Este processo não deve apenas responder às novas demandas tecnológicas, mas também antecipar futuras inovações e desafios. A legislação deve evoluir em conjunto com a tecnologia, garantindo que o desenvolvimento digital ocorra de forma segura e benéfica para todos os usuários da rede.
O Marco Civil da Internet (MCI), trouxe inovações fundamentais para a regulação do ambiente digital no Brasil, destacando-se pela abordagem holística que visa a proteção integral dos direitos dos usuários e a responsabilização equitativa dos provedores de serviços. Com princípios ancorados na privacidade, na proteção de dados, na liberdade de expressão, na neutralidade de rede e na responsabilidade dos provedores, o MCI delineou um panorama regulatório que se pretende universal e essencial para o exercício da cidadania.
O Artigo 4º do MCI ressalta seu caráter universal, e o Artigo 7º, sua natureza essencial para a cidadania, englobando direitos como a continuidade da prestação do serviço e o consentimento expresso e informado para coleta e uso dos dados pessoais. Este último destaca a proteção robusta à privacidade e às comunicações, além de impor aos agentes públicos o dever de promover a inclusão digital e o acesso não discriminatório. A legislação também exige que os provedores de conexão garantam a neutralidade da rede, proibindo qualquer forma de discriminação no tráfego de dados.
Entretanto, a discussão contemporânea sobre a atualidade do MCI centra-se significativamente no Artigo 19, que regula a responsabilidade dos provedores de aplicações de internet. Este artigo estipula que tais provedores só podem ser responsabilizados civilmente por conteúdos gerados por terceiros se descumprirem ordem judicial específica para sua remoção. Essa disposição busca equilibrar a proteção à liberdade de expressão com a necessidade de combater abusos na rede.
No entanto, a aplicação deste artigo tem sido alvo de críticas. Há uma percepção de que ele não acompanhou as evoluções dos modelos de negócios digitais, especialmente com a ascensão de algoritmos que personalizam e direcionam conteúdo aos usuários, aumentando os desafios relacionados à segurança e à monetização das plataformas. Essas mudanças sugerem que o Artigo 19, tal como está, pode não ser mais suficiente para lidar com as complexidades atuais da internet.
Além disso, a interpretação restritiva do Artigo 19 tem levantado preocupações sobre sua eficácia em garantir que os provedores de plataformas assumam responsabilidade adequada por atividades de moderação de conteúdo, como impulsionamento e recomendação. Contudo é preciso refletir, visto que seria como penalizar a praça pública por que alguém cometeu um ilícito, e em tempos onde a informação e os dados pessoais são os ativos mais valiosos, pessoas em cargos
Nesse contexto, emerge a proposta de que o MCI, especialmente o Artigo 19, seja revisitado e possivelmente reformulado para refletir melhor as realidades e os desafios atuais do ambiente digital. Isso incluiria a consideração de exceções mais específicas, como casos de conteúdo de vingança pornográfica, e uma análise mais profunda sobre como as grandes plataformas digitais estão atualmente estruturadas e operam globalmente.
Ao considerar tais atualizações, é crucial que o processo seja conduzido de maneira democrática, com ampla participação da sociedade, para garantir que as reformas propostas no MCI continuem a refletir os valores e as necessidades de todos os brasileiros. A lei, ao ser aprimorada, deve tanto proteger os direitos fundamentais dos usuários quanto impor responsabilidades justas e claras aos provedores, acompanhando assim o ritmo acelerado das inovações tecnológicas.
O Marco Civil da Internet (MCI), em sua essência, estabeleceu um marco regulatório evolutivo para a gestão da internet no Brasil, mas, como qualquer legislação que se depara com a rápida evolução tecnológica, enfrenta desafios para se manter atualizado. O MCI prevê responsabilidade por omissão das plataformas de aplicações, evitando que exerçam uma fiscalização excessiva que poderia encrostar funções judiciais, como o julgamento e a avaliação do exercício de direitos. Essa moderação cautelosa é fundamental para não concentrar poder excessivo nas mãos das plataformas, mas também suscita a necessidade de uma adaptação às realidades contemporâneas de uso da internet.
Apesar de o MCI ser considerado uma legislação robusta, projetada para ser duradoura, a dinâmica do ambiente digital e o surgimento de novas formas de comunicação e desinformação demandam uma revisão contínua. Originalmente, a desinformação não era um foco principal do MCI, que estava mais voltado para a moderação de conteúdo. No entanto, com o advento de tecnologias avançadas e a capacidade ampliada de viralização de conteúdos, torna-se necessário discutir regulamentações específicas para lidar com essas questões sem necessariamente alterar a essência do MCI ou o Artigo 19.
A periodicidade na revisão do MCI é essencial, e poderia permitir que a legislação acompanhe mais de perto a evolução da tecnologia e da sociedade. Isso abordaria a questão da obsolescência legislativa, inerente às leis que tratam de tecnologia devido à velocidade de inovações no setor.
Além das questões de privacidade e neutralidade de rede já cobertas pelo MCI e pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) de 2016, a regulamentação do direito autoral no contexto digital tornou-se um tema urgente. O crescimento da inteligência artificial e o uso de algoritmos para criar e distribuir conteúdo tornam a discussão sobre direitos autorais ainda mais crítica. O fato de o MCI não abordar extensivamente os direitos autorais revela uma lacuna que precisa ser preenchida, considerando as novas formas de criação e compartilhamento de conteúdo impulsionadas pela tecnologia.
Portanto, embora o MCI tenha estabelecido um forte fundamento para a regulamentação da internet no Brasil, é necessário que continue a evoluir. Isso implica a incorporação de novas perspectivas e a adaptação às mudanças tecnológicas e sociais, assegurando que continue a servir seus propósitos originais enquanto responde eficazmente aos novos desafios do ambiente digital.
PL 2630, o lobby das big techs e o controle da informação
Este conjunto de normas do Marco Civil foi concebido após um processo de amplo debate multissetorial, que envolveu acadêmicos, juristas, a sociedade civil e representantes de mercado, refletindo uma abordagem inovadora para a regulamentação digital. Apesar de seu caráter inovador, o MCI enfrentou desafios significativos desde sua concepção, especialmente em relação às pressões exercidas por grandes corporações tecnológicas durante seu processo legislativo.
Uma crítica recorrente é que, durante a tramitação do MCI, ocorreu um certo desmembramento de suas propostas originais, influenciado por lobbies intensos das big techs. Essas empresas buscavam moldar a legislação de maneira que minimizasse suas responsabilidades e maximizasse suas liberdades operacionais. Tal influência é emblemática da complexa interação entre legislação nacional e interesses corporativos globais.
Além disso, recentes desenvolvimentos legislativos, como o Projeto de Lei 2630, conhecido como PL das Fake News ou da censura, reacendem debates sobre a regulação de plataformas digitais. Críticos argumentam que, embora apresentado como um esforço para combater a desinformação e regular as atividades das plataformas, o PL pode, inadvertidamente , centralizar o controle sobre a informação nas mãos de poucos, potencializando riscos à liberdade de expressão e ao livre acesso à informação.
Nesse contexto, é crucial reconhecer a importância da Tecnologia de Registro Distribuído (Distributed Ledger Technology – DLT), como o blockchain, que exemplifica como a tecnologia pode oferecer alternativas de descentralização em face de tendências centralizadoras. Essas tecnologias emergentes representam um contraponto vital às tentativas de centralização do controle informacional, sugerindo que a regulação deve evoluir para não apenas abordar os desafios atuais mas também para antecipar futuras dinâmicas tecnológicas. A tecnologia não perdoa, e a DLT aplicada as redes sociais, deixaria os legisladores e juristas imersos no seu anacronismo diante da era digital pujante, novamente divagando nas suas ideias e desejos, pois não haveria mais provedor a ser responsabilizado. A tecnologia dispara como um foguete, e a legislação avança como um pônei enfeitado em um desfile.
Portanto, é imprescindível que o MCI seja revisitado e atualizado periodicamente, com um enfoque particular na adequação às novas realidades tecnológicas e econômicas. A revisão legislativa não deve apenas responder aos problemas imediatos mas também preparar o terreno para uma governança da internet que respeite os princípios de liberdade, privacidade e inclusão digital, enquanto se adapta às inovações tecnológicas que continuam a remodelar nossa sociedade.
Essa necessidade de atualização se torna ainda mais premente quando consideramos as questões de direitos autorais na era da inteligência artificial. É fundamental que o debate sobre direitos autorais seja ampliado para incluir as complexidades introduzidas pelas novas tecnologias, garantindo que a legislação seja capaz de proteger criadores e consumidores em um ambiente digital cada vez mais dominado por algoritmos e automatização.
A evolução do Marco Civil da Internet deve, portanto, ser um processo contínuo e dinâmico, que leve em conta não apenas as pressões econômicas e políticas mas também as oportunidades e desafios apresentados pelo avanço tecnológico.