O INCONSTITUCIONAL PREGÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

18 de junho de 2024

A Incoerência Constitucional do STF na Proteção de Dados e Privacidade

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de suspender a eficácia da Medida Provisória (MP) 954/2020, que previa o compartilhamento de dados de usuários de telecomunicações com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para fins estatísticos durante a pandemia de COVID-19, foi celebrada como uma vitória dos direitos fundamentais à privacidade e proteção de dados pessoais. O STF, ao referendar a suspensão da MP, destacou a inviolabilidade da intimidade, vida privada e sigilo de dados, conforme assegurado pelo artigo 5º, inciso X da Constituição Federal.

O STF suspendeu a eficácia dessa medida, argumentando que:

Violação de Direitos Constitucionais: O compartilhamento de dados previsto na MP violava o direito à intimidade, à vida privada e ao sigilo de dados.

Princípios de Razoabilidade e Proporcionalidade: O ministro Alexandre de Moraes destacou que a relativização dos direitos fundamentais deve observar esses princípios.

Necessidade de Debate Público: O ministro Luiz Roberto Barroso ressaltou a necessidade de um debate público sobre a relevância e urgência da medida.

Regulamento Sanitário Internacional: O ministro Gilmar Mendes mencionou que o regulamento da OMS, incorporado ao direito brasileiro, proíbe o processamento de dados desnecessários e incompatíveis com o propósito de avaliação e manejo de riscos à saúde.

Entretanto, a recente iniciativa do próprio STF em realizar o Pregão Eletrônico n. 90029/2024, que visa contratar serviços de monitoramento online e em tempo real da presença digital do tribunal em redes sociais, levanta preocupantes questões de coerência e respeito aos mesmos princípios constitucionais que o tribunal anteriormente defendeu.

A Contradição do Supremo

A decisão do STF de suspender a MP 954/2020 baseou-se nos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, argumentando que a coleta de dados prevista na medida provisória era desnecessária e excessiva, sem um debate público adequado sobre sua necessidade, relevância e urgência. Afirmou-se que a relativização dos direitos fundamentais, como o direito à privacidade e proteção de dados, deve ser rigorosamente controlada para evitar abusos.

O STF está realizando um pregão eletrônico para contratar serviços de monitoramento da presença digital do tribunal em redes sociais. O objeto do contrato inclui:

Monitoramento Online e em Tempo Real: Acompanhamento da presença digital do STF, com alertas e relatórios analíticos.

Identificação de Públicos e Formadores de Opinião: Análise de discursos, georreferenciamento de postagens, e avaliação da influência de públicos e padrões de mensagens.

E ainda no item 2.5. do documento quer que a plataforma digital da contratada, faça o georreferenciamento (geolocalização) da origem das postagens, bem como avaliar a influência dos públicos, dos padrões das mensagens e de eventuais ações organizadas na web.

O escopo do Pregão Eletrônico n. 90029/2024 do próprio STF inclui a identificação de públicos, formadores de opinião, discursos adotados e até a geolocalização da origem das postagens. Tal monitoramento detalhado da geolocalização de indivíduos que mencionam ou criticam o STF em redes sociais parece, paradoxalmente, violar os mesmos princípios constitucionais que o tribunal defendeu na MP 954/2020 durante a pandemia. A incoerência é evidente e preocupante.

A Proteção de Dados como Direito Indisponível

Antes mesmo da inserção da proteção de dados como direito fundamental em 2022 pelo Congresso Nacional, o STF na decisão da medida provisória supra sobre sua suspensão por violações Constitucionais, definiu que a proteção de dados e autodeterminação informativa eram direitos Constitucionais, ou seja, ainda em 2020, 02 anos da previsão legislativa.

A proteção de dados pessoais e a autodeterminação informativa são direitos fundamentais autônomos, que envolvem uma tutela jurídica e âmbito de incidência específicos. Esses direitos são extraídos da interpretação integrada da garantia da inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X), do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da garantia processual do habeas data (art. 5º, LXXII), todos previstos na Constituição Federal de 1988″. ADI 6389 MC-REF. / DF Inteiro Teor do Acórdão – Página 59 de 153 – Supremo Tribunal Federal

O direito à proteção de dados pessoais e à privacidade é indisponível e encontra-se consagrado na Constituição Federal, no artigo 5º, inciso X, e no inciso LXXVIII. Não se pode admitir que esse direito seja relativizado de acordo com os interesses circunstanciais de qualquer entidade, mesmo que seja o próprio Supremo Tribunal Federal. A tentativa do STF de justificar a coleta de dados de geolocalização sob o pretexto de monitoramento e análise de redes sociais é um exemplo claro de como direitos fundamentais podem ser manipulados e colocados em risco.

Do direito Internacional comparado na decisão do STF

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de suspender a eficácia da Medida Provisória (MP) 954/2020, fundamentada no direito à proteção de dados pessoais e na privacidade dos cidadãos, foi amplamente respaldada por precedentes do direito comparado internacional. A Corte, ao referendar a suspensão da MP, destacou a importância dos princípios constitucionais e internacionais que protegem a intimidade e o sigilo de dados pessoais. No entanto, a recente iniciativa do próprio STF de monitorar a geolocalização de indivíduos em redes sociais, como previsto no Pregão Eletrônico n. 90029/2024, revela um flagrante incoerência com os mesmos princípios que anteriormente defendera.

Referências ao Direito Comparado

No julgamento da MP 954/2020, o STF citou jurisprudências internacionais para reforçar sua decisão, Trouxe a corte aos autos a citação da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, onde no artigo 8º, assegura que “todas as pessoas têm direito à proteção dos dados de caráter pessoal que lhes digam respeito”. Mencionou o Tribunal de Justiça da União Europeia, no caso Digital Rights Ireland (C-293/12), que enfatizou que qualquer restrição aos direitos de proteção de dados deve ser necessária e proporcional aos objetivos de interesse geral. De forma semelhante, lembrou sobre o Tribunal Constitucional Alemão, no caso da Lei do Censo de 1983, que reconheceu a autonomia do direito à autodeterminação informativa, determinando que o processamento de dados pessoais deve ser estritamente limitado para proteger a privacidade dos indivíduos.

trecho da decisão do STF:

“O julgado alemão é relevante porque reconheceu a autonomia dos direitos à proteção dos dados pessoais e à autodeterminação informacional, destacados do direito à privacidade. Para o Tribunal, a capacidade do indivíduo de autodeterminar seus dados pessoais é parcela fundamental do seu direito de desenvolver livremente sua personalidade. Dessa forma, a atividade de processamento dos dados pessoais deve ter limites, impondo-se “precauções organizacionais e processuais que combatam o perigo de uma violação do direito da personalidade” BVerfGE 65, 1, “Recenseamento” (Volkszählung). MARTINS, Leonardo. (org.) Cinquenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional federal Alemão. Montevidéu: Fundação Konrad Adenauer, 2005, p. 239. Inteiro Teor do Acórdão – Página 61 de 153 ADI 6389 MC-REF. / DF Supremo Tribunal Federal

A Proteção da Privacidade na Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Responsabilidade do Brasil

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948, é um marco fundamental na proteção dos direitos e liberdades individuais em todo o mundo. O artigo 12 desta Declaração estabelece:

Artigo 12 – Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948):

“Ninguém será objeto de ingerências arbitrárias em sua vida privada, sua família, seu domicílio ou sua correspondência, nem de ataques à sua honra ou à sua reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contratais ingerências ou ataques.”

Signatário e Compromisso do Brasil

O Brasil, como signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, compromete-se a respeitar e proteger os direitos fundamentais estabelecidos no documento. Este compromisso implica uma obrigação legal e moral de assegurar que as garantias de privacidade e proteção contra ingerências arbitrárias sejam efetivamente implementadas e respeitadas em todo o território nacional.

A Proteção da Privacidade e a Ingerência Arbitrária

O artigo 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos reafirma que ninguém deve ser submetido a interferências arbitrárias em sua vida privada, família, domicílio ou correspondência. Isto inclui a proteção contra a Vigilância Indevida.

A recente iniciativa do Supremo Tribunal Federal (STF) de monitorar a geolocalização de indivíduos em redes sociais, conforme previsto no Pregão Eletrônico n. 90029/2024, representa uma violação flagrante desses princípios. A coleta de dados de geolocalização para monitorar críticos é uma ingerência arbitrária na vida privada dos cidadãos e viola o direito à liberdade de expressão e privacidade, pilares fundamentais da democracia.

A Violação da Liberdade de Expressão

A proposta do STF de monitorar a geolocalização das postagens em redes sociais não só contraria os princípios de proteção de dados que a própria Corte defendeu, mas também viola a liberdade de expressão. A liberdade de expressão é um direito fundamental, sem o qual não pode haver verdadeira liberdade. Ao permitir a identificação geográfica de críticos, o STF corre o risco de criar um ambiente de vigilância e intimidação que pode inibir a livre manifestação de opiniões e ideias.

A Necessidade de Coerência e Respeito aos Direitos Fundamentais

A aparente dicotomia entre a defesa intransigente dos direitos de privacidade na suspensão da MP 954/2020 e a tentativa de monitoramento digital detalhado levanta sérias preocupações sobre a coerência das ações do STF. A liberdade de expressão e o direito à privacidade são pilares fundamentais de qualquer sociedade democrática. A utilização da geolocalização para monitorar críticos não só é desproporcional e desnecessária, como também representa uma grave ameaça à autonomia informativa e à integridade dos direitos individuais.

Lições da História

A história fornece exemplos trágicos das consequências da vigilância estatal excessiva. O livro “IBM e o Holocausto”, de Edwin Black, revela como os nazistas utilizaram máquinas leitoras de cartões perfurados desenvolvidas pela IBM para registrar dados sobre etnia, religião, sexualidade e deficiência física dos cidadãos alemães. Esse sistema permitiu ao regime nazista identificar e perseguir facilmente aqueles considerados inimigos do Estado. Essa lição histórica sublinha a importância de limites rigorosos ao uso de tecnologias de vigilância para proteger os direitos e liberdades individuais. Black, Edwin. IBM e o Holocausto: A aliança estratégica entre a Alemanha nazista e a maior empresa americana. Geração Editorial, 2001.

A Necessária adesão Constitucional

A Constituição Federal deve ser aplicada de forma uniforme e coerente. Não se pode tolerar que uma instituição pública defenda com veemência os direitos fundamentais em um contexto e, simultaneamente, promova práticas que os violam em outro. A relativização dos direitos de privacidade e proteção de dados com base em interesses institucionais específicos subverte a própria essência dos direitos fundamentais como inalienáveis e invioláveis.

Conclusão

A atitude do STF de suspender a MP 954/2020, protegendo a privacidade e os dados dos cidadãos, foi a esperada quando se trata dos direitos fundamentais. Contudo, a mesma rigorosidade deve ser aplicada a todas as iniciativas, incluindo as próprias práticas do tribunal. O monitoramento digital proposto pelo STF, com a coleta de dados de geolocalização, deve ser revisado à luz dos princípios constitucionais que o próprio tribunal outrora defendeu.

É imperativo que o STF, guardião da Constituição, mantenha uma postura coerente e transparente, respeitando integralmente os direitos fundamentais à privacidade e proteção de dados. A sociedade brasileira espera e merece nada menos do que um compromisso inabalável com a defesa dos direitos consagrados em nossa Carta Magna. Qualquer tentativa de relativizar esses direitos deve ser firmemente repudiada, independentemente da fonte ou motivação.

Um guardião da Constituição que oscila quando se sente ameaçado é como um estudante que se ofende com perguntas difíceis: a democracia, afinal, é o convívio dos contrários, e exigir sua prática na sociedade requer mais do que teorias elegantes; é preciso vivê-la, não apenas recitá-la.